Bicho ou Nota (Lobo-Guará)


De “A Olívia – Selva Rock Brasileira”, por Marcelo Rosado, Louis Vidall e Diogo Pacífico


Em qualquer das longas ou das curtas conversas que tivemos, não me recordo de algum dia ter conseguido entender inteiramente quais foram os motivos que levaram o Lobo-Guará a uma tão drástica mudança de vida. É difícil pensar sobre isso em retrospectiva.
Talvez tudo tenha começado com algumas dificuldades financeiras incontornáveis. Ele adorava o lugar em que tinha crescido. Dizia, com uma mistura de orgulho e saudosismo, que “antigamente, tudo isso aqui era mato”. Mas fazia muito tempo que já mostrava preocupações com uma ordem de despejo, reintegração de posse ou algo do tipo. Andava sempre aflito.
Foi nesse tempo que começaram as ameaças. Ninguém conseguia dizer com certeza se aquilo era real ou se era tudo paranoia da cabeça dele. Até que veio o incêndio.
O fogo é capaz de provocar muitas sensações em quem o observa com atenção. Fascínio, desejo, pavor. Também é capaz de relembrar que alguns feitos não podem ser desfeitos.
A fumaça, de todo modo, não era a única coisa que deixava o Lobo sufocado. Sentia-se, àquela altura, desprestigiado, fora do seu tempo e do seu lugar. Sentia que algo lhe faltava. E sentia que precisava buscar esse algo longe dali. Já sabia o que era o progresso. Já tinha visto as máquinas, as planilhas e as estruturas concretas do novo mundo.
Cansado, sem-teto e empoeirado, o Lobo-Guará se mudou para a cidade grande.
Continuou cansado, sem-teto e ainda mais empoeirado por muito tempo. Conheceu de perto o chão duro da miséria, tornou-se mais um invisível na paisagem cinzenta.
O belo brilho avermelhado da sua cabeleira, porém, ainda estava lá, debaixo das camadas de poeira e iniquidade. Chamou a atenção de alguém, que conhecia outro alguém, que o chamou para trabalhar num estúdio fotográfico.
Trabalhou alguns meses como freelancer, fez tudo o que mandaram. Começou a posar também por saber obedecer e, meio por acaso, meio sem saber quem fez o que, viu sua foto estampando todos os jornais, todas as revistas e anúncios do Banco Central.
De um dia para o outro, tinha alcançado a fama.
Por alguns instantes, sentiu-se reconhecido, aclamado. Sentiu que havia conquistado tudo que havia para conquistar. Pôde aproveitar, finalmente, a sensação de fazer parte daquela estrutura que avançava, imparável, sobre tudo o que havia ficado para trás. Sobre tudo que é permanente. Pôde experimentar todo o luxo, toda a pompa, toda a afetação que acompanha o sucesso efêmero.
Estava, a bem da verdade, envaidecido.
Em tudo que olhava, via a sua imagem estampada na nota. Justamente a nota que quase ninguém tinha visto. Passou a duvidar de quem era, talvez para apagar o sofrimento por que passara. Duvidou do seu nome, da sua natureza. Não sabia mais se era bicho, se era homem, ou se era a própria nota.
Antes de se perder por completo e de entrar mais uma vez em esquecimento, buscou o caminho de volta.
Deu-se conta de que não precisava sair de onde estava para encontrar o que buscava. Pensou no tempo que havia passado na cidade desde que saíra da mata e entendeu que aquilo que é passageiro não pode substituir o que é permanente. Percebeu, talvez um pouco tarde demais, que não são as imponentes estruturas de aço e concreto que seguram o firmamento.