O Contador de História – Por José de Paiva Rebouças

 

Foto: Eriberto Monteiro

Natalense radicado em Mossoró desde a década de 1990, Geraldo Maia se tornou pesquisador referência da história da região graças a sua enorme curiosidade sobre os acontecimentos e fatos relevantes. Aposentado, hoje vive em sua casa confirmando dados, reescrevendo acontecimentos e contando novos pedaços de nossa história.

Sempre que visito Geraldo Maia procuro por Luke, seu cachorro. Um labrador lindo e simpático que nos dá alguns minutos de atenção antes de sumir no imenso quintal da casa. Situada no bairro Nova Bethânia, mantém o aspecto das casas de classe média da década de 1990.

Por dentro do muro, muito bem protegido, largo espaço pavimentado, uma piscina sempre limpa e azul, um jardim bem tratado ao fundo e na fronte esquerda de quem entra a área de lazer com uma mesa grande, um bar com muitas cachaças – outra de suas paixões – e seu escritório recheado de acontecimentos.

Por lá corre um vento leve e agradável quebrando o calor causticante do centro de Mossoró. A mistura dessas coisas mais a boa conversa com Geraldo nos faz esquecer o resto e nos perder das horas.

Em seu escritório, as prateleiras vão até o teto, cheias de livros e recortes históricos. Na decoração tem espadas, punhais de cangaceiros, santos barrocos originais em madeira e um Winchester 44 emoldurado que ganhou da família.

Considerado o principal guardador da memória de Mossoró atualmente, Geraldo Maia é modesto e não gosta de classificação. Pode até não se considerar o principal historiador da cidade, mas é a ele que os jornais, estudantes e televisões recorrem quando querem tratar de determinados assuntos e tirar certas dúvidas históricas.

Geraldo Maia do Nascimento nasceu no dia 23 de maio de 1955 na rua Ritinha Coelho, no bairro Lagoa Seca, em Natal. Apesar de hoje ser zona sul, região de classe média, à época era um grande areal longe de tudo. Para se chegar ao Alecrim, por exemplo, era preciso pegar um bonde, principal meio de transporte da época.

Filho do comerciante Geraldo Dias do Nascimento, falecido em 2010 aos 84 anos, e da dona de casa Criselda Maia do Nascimento, hoje com 90 anos, é o filho do meio de três nascidos, sendo Gisélia a mais velha e Genivaldo o caçula. A diferença de idade entre Geraldo e os outros dois é de três anos.

Em Natal estudou no Grupo Escolar Clementino Câmara e na antiga Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (ETFERN), hoje Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do RN (IFRN). Lá fez o curso técnico em edificações que lhe permitiu os primeiros empregos. Em 1980 foi aprovado no curso de Estatística na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mas acabou mudando para Economia quando foi transferido para Mossoró, porque não tinha Estatística na Fundação Universidade Regional do Rio Grande do Norte (FURRN). Um ano depois quando voltou para Natal, concluiu o curso de Economia na UFRN.

Neste ínterim, começou a namorar, aos 17 anos, com Maria Nilce Dantas, paraibana, com quem se casou em 26 de janeiro de 1980. Formada em História, Nilce se aposentou como professora. Dessa união nasceram Marcelo Dantas do Nascimento e Renato Dantas do Nascimento, formados e empresários na área de Análise de Sistemas.

Seu primeiro emprego foi no Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP), por volta dos 22 anos, quando ainda era aluno da Etfern. Começou como estagiário e terminou como fiscal de obras. Saiu quando passou no concurso da Petrobras, em 1982, onde começou também como fiscal de obras.

– Entrei na Petrobras justamente dois anos depois de me casar com Nilce, no dia 26 de janeiro de 1982. Tenho guardado todos os crachás e promoções que recebi em 39 anos de trabalho, conta Geraldo expondo o orgulho de ter feito parte da estatal.

Em quase quatro décadas de atuação no ramo petrolífero, trabalhou também no setor de contratações, mas terminou coordenando os projetos culturais e sociais do setor de Comunicação, cobrindo oito municípios do RN e Ceará.

Lembra com saudosismo sua chegada a Mossoró em 1982. Estranhou a diferença da capital e a rusticidade da nova morada.

– Minha mulher precisou comprar uns pregos e voltou porque o vendedor quis saber quantas libras ela precisava (risos). No mercado trazíamos a carne ainda pendurada na embira, quer dizer, coisa de lugar simples e interiorano, comenta.

Há três anos apenas instalado na cidade, após a descoberta de petróleo no hotel Thermas, a base da Petrobras ficava na Rua Duodécimo Rosado, onde hoje é uma clínica, uma casa que dava com os fundos para o cemitério. Tinha 20 funcionários e apenas dois campos de produção: na fazenda São João, próximo onde hoje é o Partage Shopping, e na fazenda Belém, em Icapuí/CE.

Quando foi transferido pra cá, Geraldo teve de deixar o curso de Estatística e continuar no curso de Economia, oferecido pela Furrn, e sua mulher é quem foi fazer sua inscrição.

– Não sei que caminho ela pegou, mas chegou me contando que precisou passar debaixo de arame e atravessar currais para chegar à universidade. (risos) Outra lembrança que tenho é de Gonzaga Chimbinho, então diretor da Fundação, que chegava às salas e dizia que quem não pagasse a mensalidade não poderia fazer as provas. Achava engraçado um diretor fazer isso numa universidade. (risos).

Apesar disso, lembra que a cidade já tinha uma forte cena cultural. Embora pequena, tinha três cinemas ativos: Cine Cid, Cine Caiçara e Cine Pax, mas também ótimo carnaval com boates e o Bloco Ipiranga.

Tinha ainda um rio limpo onde as pessoas levavam as famílias e se banhavam nos finais de semana. A concentração era debaixo da ponte da BR-304, próximo à saída para Governador Dix-Sept Rosado.

Por volta de 1983, voltou para Natal onde permaneceu por cerca de 16 anos. Só em 1999 a Petrobras transferiu seu setor de novo para Mossoró. Desde então não saiu mais daqui.

Geraldo desenvolveu o gosto pela leitura ainda na infância graças à influência do pai que lhe enchia de revistas em quadrinhos. Ainda hoje tem todas elas guardadas.

Quando ainda estudante, Nilce conseguiu uma bolsa de trabalho no Museu Câmara Cascudo. Com muito interesse no tema, Geraldo conseguiu uma bolsa de pesquisa para poder viajar com o curso de História. Chamava de bolsa, mas não tinha dinheiro, apenas transporte para viajar, fita cassete e filmes para registrar as aulas e os monumentos históricos do RN, objeto da pesquisa.

Apesar disso, Natal nunca lhe deu espaço para expressar suas ideias, coisa que mudou completamente em Mossoró, graças a seu amigo Kydelmir Dantas que levou seus textos e apresentou aos jornais. Logo, Geraldo foi convidado pelo O Mossoroense para estrear uma coluna. De 1999 pra cá são mais de 2 mil textos publicados.

Das coisas que se arrepende foi nunca ter se aproximado de Câmara Cascudo, apesar de ver muitas de suas conferências. O achava muito superior. O mesmo equívoco, no entanto, não cometeu com Vingt-un Rosado.

– Quando chegei a Mossoró e passei a publicar meus artigos nos jornais, Vingt-un Rosado mandou um recado por Kydelmir que queria me conhecer. Então eu fui, me apresentei e conversamos bastante. Ele me presenteou com muitos livros. Foi como se, naquele momento me adotasse como filho também porque, a partir daí, o motorista dele chegava em minha casa trazendo pacotes livros.

Foi também Kydelmir quem lhe apresentou a Raimundo Soares de Brito, outro que lhe deu muito suporte no trato com as pesquisas e com quem conversava em muitos fins de tarde.

Geraldo soube cultivar as amizades e aproveitar as oportunidades. Seu currículo é extenso demais para este espaço, mas é possível citar que integra e participa de mais de 20 sociedades e comissões, entre elas a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), O Instituto Histórico, Geográfico do Rio Grande do Norte (IGHRN), Rotary Club e a Loja Maçônica Sebastião Vasconcelos dos Santos.

Publicou 39 plaquetes, três cordéis e 11 livros, sendo os mais recentes “Jararaca – prisão e morte de um cangaceiro (Sebo Vermelho, 2016)” e “O inventor do País de Mossoró – uma biografia de Jerônimo Vingt-un Rosado Maia (Fundação José Augusto, 2017)”. Tem outros oito livros para serem publicados.

Na área gourmet de sua casa, sob os carinhos de Luke e a brisa fria que atravessa o jardim, me encontrei com ele para uma conversa rápida que durou para mais de duas horas. Desse papo surgiu este texto e uma pequena entrevista:

– As pessoas mudaram com o tempo ou o tempo é que muda as pessoas?

– Acho que as pessoas é que mudam. Mudam com o tempo, mudam com relacionamentos. O tempo é imutável. As pessoas sim, mudam de acordo com suas necessidades e oportunidades também.

– O que a história lhe ensinou sobre a sociedade?

– Em algumas partes da história a gente chega até a se decepcionar, ao ver que a história está sendo usada de maneira incorreta e, às vezes, em benefício de alguém. Quero só citar um exemplo. Você sabe que a emancipação política da cidade é seu momento mais importante, é quando forma o município, quando passa a ter suas próprias autoridades. Aconteceu isso aqui em Mossoró em 15 de março de 1852, isso tem até na bandeira do município, mas esta data nunca foi levada em consideração. Inclusive, tinha um feriado municipal nesta data, mas como o 30 de setembro sempre foi mais forte a data da emancipação acabou em desuso. Mas, em 1952, quando completou o centenário da emancipação política, os jornais, em especial O Mossoroense, fez edições especiais comemorando este fato, mas depois ficou nisso mesmo. Mais recentemente, o vereador Júnior Escóssia, então presidente da Câmara Municipal, resolveu criar o feriado da emancipação política, não sabendo que já existia uma lei que regulamentava isso. Então ele errou duas vezes: por criar uma lei que já existia e por escolher a data errada, porque ao invés de pegar o 15 de março, pegou o 9 de novembro que é outro fato histórico. Acontece que quando Mossoró foi emancipada não tinha estrutura para ser elevada à categoria de cidade e então foi emancipada como vila. Apenas 15 anos depois, com a mudança do perfil econômico é que ela passou ao predicamento de cidade em 9 de novembro. Então, quando isso aconteceu os jornais questionaram e eu expliquei que tinha sido um erro. Mas como o vereador não admitia, deixou de ser um erro histórico e passou a ser um problema político porque a Câmara, que tinha votado o projeto por unanimidade, também não queria admitir que tinha errado. Foi 15 anos de briga e debates na televisão, até que através de projeto do então vereador Genivan Vale a gente conseguiu corrigir esta data. Rubens Coelho e eu precisamos ir à Câmara explicar o contexto histórico para poder convencê-los desse equívoco.

– No Brasil as pessoas não costumam preservar a história. É isso que nos leva a repeti-la?

– Acredito que sim. A gente vê aí a história se repetindo todos os anos e os erros acompanhando.

– Os ídolos no Brasil são feitos de fatos ou pela história?

– Tem alguns que são de fato, mas muitos surgiram pela manipulação da história. Tenho exemplo para isso aí também. É muito importante aqui em Mossoró falarmos dos “heróis da resistência” e quando você fala deles, que lutaram contra o bando de Lampião, se começa a questionar. Por exemplo, o Coronel Rodolfo Fernandes a gente sabe que realmente foi um grande mérito dele acreditar na invasão e, mesmo não tendo apoio de governo e de nada, conseguiu convencer a população de que aquilo poderia acontecer, o que de fato aconteceu. Então pode ser chamado de herói. Agora, o coronel Gurgel era comerciante em Natal, tinha uma fazenda aqui em Pedra de Abelha, hoje cidade de Felipe Guerra, e quando soube que a cidade estava para ser atacada veio para resgatar a mulher. Primeiro, veio a Mossoró e fretou um carro que, na ida, errou o caminho e saiu exatamente onde estava assentado o bando de Lampião. Ele foi preso e ficou 15 dias com o bando de Lampião e depois foi solto. Então, que heroísmo encontramos em coronel Gurgel? Dizem, não, ele escreveu uma carta, detalhando. Sim, mas se ele é herói, como vamos chamar o homem que estava de arma na mão defendendo a cidade? A mesma coisa com Gatinho, o motorista do carro que levou Coronel Gurgel. Ele teve a infelicidade de ser preso no meio do caminho e Lampião aproveitou seu carro para trazer um bilhete para o coronel Rodolfo Fernandes. Ele entregou esse bilhete e sumiu da história. Aí dizem: não, mas ele trouxe o bilhete. Sim, mas qual era a alternativa, ficar preso lá com os cangaceiros? E a família já foi homenageada duas vezes pelo herói da resistência, aquele negócio todo. Então, você olha no Memorial da Resistência e todos são apontados como heróis, mas nem todos resistem a uma análise mais profunda.

– Você é criticado por pesquisar história mesmo tendo cursado Economia?

– Me criticam, inclusive na universidade, porque alguns órgãos me apontam como historiador, porque historiador tem de ser formado em história. E eu digo que não. Porque não existe uma formação para historiador. Historiador é aquele que escreve história. Se você termina o curso de História você é licenciado em História, doutor, pós-doutor, mas não é historiador. Segundo alguns aqui da universidade existe um projeto na Câmara Federal para limitar e só reconhecer como historiador aquele que for formado em história. Acho ridículo um negócio desses, mas eu mesmo nunca disse a ninguém que sou historiador, digo que sou um contador de história ou pesquisador, porque é o que faço. Se você pensar nos nomes importantes você entende melhor isso. Câmara Cascudo, por exemplo, era advogado, Vingt-un Rosado que escreveu mais de 200 livros era agrônomo, então, o que vemos é que são poucos graduados em história que apresentam publicação relevante sobre a região.

– O cangaço ensina alguma coisa sobre viver em sociedade?

– Ensina. Ensina muito. Até mesmo dentro do bando, quando você começa a estudar, percebe que a união que existia era estupenda. A partir de 1930, quando começam a levar mulheres para o cangaço, não era fácil ter um bando com 50 homens e dez mulheres e conseguir que houvesse respeito. É uma educação, mesmo entre bandidos, de respeito muito grande. Só teve um caso de traição, lá na Bahia, que o cara quando descobriu que a mulher estava sendo infiel acabou assassinando covardemente ela. Mas, fora isso, não se tem conhecimento. Do outro lado, a necessidade de união das cidades para combater os cangaceiros, coisa que tinham de fazer independente de ter ou não dinheiro, é também um exemplo.

– Em que momento o cangaço forma heróis?

– Na literatura de cordel e no cinema, só!

– Os Rosados são tão míticos quanto os cangaceiros no contexto de Mossoró?

– Eu acho que sim. Não há dúvida que teve muita coisa boa dos Rosados aqui na cidade, falo da velha guarda. A própria família cuidou de criar esse clima, colocando o nome da família em tudo que é prédio público para formar esse conceito do nome da família. Não podemos negar que houve algum avanço através dos Rosados, mas eles se beneficiam muito dessa fama criada.

– Tem muito historiador em Mossoró e pouca história ou eles são equivalentes?

– Eu acho que tem (risos) um historiador para cada público. Tem pessoas sérias que pesquisam, que procuram sempre estar corrigindo dados históricos, mas também tem muita gente se aproveitando, porque viram que é um nicho para quem sabe vender livro, o que não é meu caso, porque sou um péssimo vendedor de livro que não tira sequer o investimento.

– O que a história lhe ensinou sobre a forma de olhar o outro?

– Rapaz, é muito interessante essa questão, porque, um dia me perguntaram porque eu não escrevo biografias de pessoas vivas, e eu disse que não gostava, porque é muito esquisito falar de pessoas vivas. Essa minha resposta Milton Marques completou ao dizer que a gente pode conhecer uma pessoa e escrever toda a história dela e no outro dia ela faz uma coisa que bota toda a sua trajetória a perder e, realmente, depois que morre não tem mais como mudar a história. Então, é muito interessante olharmos para as pessoas neste sentido. A pessoa tem uma trajetória como ser humano muito boa e, de repente, muda sua maneira de ser e a gente fica sem entender.

– O que você viu da vida e o que ainda espera ver?

– Estou fazendo agora 64 anos de idade, quando nasci não existia essa expectativa de vida, era bem menor. Então, já vi muita coisa, o mundo tem evoluído muito rápido. E o negócio é tão eficiente que a gente não sabe se amanhã vai ter vida porque, do jeito que tem a tecnologia, tem a criminalidade e cada vez mais os países querendo dominar uns aos outros. Como o amanhã não está escrito ainda, não dá pra saber o que vai acontecer.

– Considera que tem tido uma boa vida?

– Sim, quase 40 anos de trabalho em apenas dois empregos, sendo cinco anos no INOCOP e o restante na Petrobras. Hoje estou aposentado, mas fazendo o que gosto, porque, graças a Deus, me aposentei e não precisei de outro trabalho para complementar minha renda. Eu e minha mulher somos aposentados. As pessoas perguntam, quando a gente se aposenta: o que você vai fazer da vida? E eu digo, nada! Já fiz o que tinha de fazer. Vou viver agora. Meus filhos são formados, já ganham até melhor do que eu. Então tudo é relativo, a natureza vai ajustando a vida de cada um, de modo que se você teve uma trajetória normal as coisas ser ajustam naturalmente.

– Se você pudesse dar um conselho universal, sobretudo para a juventude. Você o daria e, se o desse, qual seria este conselho?

– Que o que a gente está precisando hoje mesmo é de honestidade, de você seguir sua trilha sem medo de a noite chegar e deitar sua cabeça e deitar tranquilo.

JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS
Balada do Impostor/Biografismo
Domingo/Jornal de Fato
www.biografismo.blogspot.com